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sexta-feira, 27 de março de 2009

A Pena e a Espada*


Para os filosofos antigos, a obra da civilização tem sido edificada sobre os pilares da ordem e do saber. Por isto, nas teologias do Oriente e nas mitologias da época clássica, o aspecto civilizador na Trindade geralmente apresenta dois atributos principais: a pena e a espada.
Ao modo de Atenas-Minerva e do bodhisatwa Manjushri, Kuan Ti foi um dos maiores generais da China antiga (ver imagem ao lado). Na mitologia chinesa, "Kuan Ti acumulava as funções de deus da guerra com as de deus da literatura. Era uma divindade civilizada que conseguia evitar a guerra e manter a justiça." (Anthony Cristie, Biblioteca dos Grandes Mitos e Lendas Universais, Ed. Verbo, Lisb./SP, 1093). Eis perfeitamente delineado a prática do "caminho do meio", e podemos dizer que tais divindades expressam a visão aristocrática de mundo. O conhecimento tem a virtude de evitar que os extremos se acirrem. É o líder quem teria o dom de fazer isto, pois todo o Pacificador é um líder natural, um estadista. Isto está presente nas palavras de Jesus: "Bem-aventurados os pacíficos, porque eles herdarão a terra" (Mt 5,5).
O símbolo da espada ressurge com força na esperada última encarnação de Vishnu, o Kalki Avatar, comumente representado sobre o seu cavalo branco brandindo uma cimitarra, de modo semelhante a como aparece no Apocalipse com seu arco ou com uma espada na boca, representando assim o Verbo ou o Logos. Mas, novamente, é dito que suas vitórias virão sem o derramamento de sangue, porque conquistadas pela luz do conhecimento que derramará em abundância, donde o símbolo do Aguador (Aquário) que lhe corresponde.
Tudo o que é fecundo surge do equilíbrio, e assim ocorre na harmonia entre conhecimento e prática. Permanecer num destes extremos, representa perder a oportunidade da experiência real e a colheita dos frutos duradouros. Apenas saber é inútil e alimenta a vaidade, sendo motivado pela soberba. Como disse São Paulo: "O conhecimento incha, o amor enobrece." (temos aqui já outro par: ciência e amor.) Por sua vez, apenas fazer é vão e cego, sendo motivado pela cobiça e a superficialidade. Por isto disse Jesus: "Busqueis um tesouro no céu onde as traças e os ladrões não alcançam".
Basicamente, se trata de saber harmonizar o conhecimento com a ação, de modo a usar o conhecimento para a luta e a luta para obter o saber. Batalhar com conhecimento pode ser mais que estratégia marcial, podendo se manifestar, por exemplo, numa atividade educacional dinâmica, criativa e transformadora. Por sua vez, uma guerra apenas pode ser justificada e realmente vencida, se embasada por conhecimento profundo e não por desejos pessoais –como disse alguém, "se vais empreender uma batalha, te assegures de que Deus está ao teu lado". Quando o avatar Krishna liderou a facção de seu pupilo Arjuna, dirijia a luta sem apego ou aversão, apenas com o sentimento de cumprir o seu dever pela causa da lei divina (dharma). Um sábio universal conhecer o ideal e o universal, mas sem perder de vista o real e o particular, que é, afinal de contas, o próprio caminho que conduz à meta. A vantagem de conhecer o geral, está em não cair em extremos e, assim, poder de início cooptar melhor os colaboradores e, depois, preservar mais facilmente a nova ordem.
Arjuna hesitava em lutar contra os seus parentes, pois o homem comum hesita em se debater contra aquilo com que se identifica, permanecendo assim na inércia e sem alcançar o superior. Nisto reside a reafirmação da necessidade do guia clarividente. Por outro lado, ele seria capaz de lutar apenas por seus oponentes não serem parentes seus, afrontando igualmente a lei maior. Por isto, são necessários os Mestres, para conduzir pelo caminho central, seja de que forma for, livre de apegos e aversões.
De fato, a forma como os opostos são empregados é secundária. O importante é que estejam reunidos. O Taoísmo mostram que Ying e Yang (as polaridades em geral) podem ser buscados com proveito, se houver uma semente de equilíbrio no interior de cada um. Assim, os Farroupilhas travaram uma boa luta quando reivindicaram justiça ao Império brasileiro; além disto, estavam inspirados pelos ideais iluministas e se adiantaram ao seu tempo. Antes disto, as Missões Jesuíticas, idealizadas sob o ideário Renascentista por alguns dos homens mais brilhantes da época, e já retornando ao inspirar por sua vez os Iluministas, também tiveram páginas heróicas e gloriosas.
Seria oportuno mencionar o exemplo do grande samurai Musashi que, ao avançar em idade, abandonou a espada e começou a empregar o pincel para praticar a caligrafia Zen e a escrever seus pensamentos sobre a arte da estratégia marcial. É também o caso de Sun Tzu, além de Sócrates e Xenofonte. Assim, um inspirado estrategista pode legar as suas experiências e estilo, para que outros possam usar teoria e prática a um só tempo. A perfeição reside, certamente, na superação virtual dos opostos, o que, todavia, apenas se alcança praticando-os.
Mas, no Ocidente, teoria e prática foram cada vez mais afastados nos últimos 500 anos –um hábito muito "republicano", aliás. Alguns acumulam muita informação, e outros praticam muita atividade. E com a Modernidade, filosofia e religião se tornaram profundamente divorciados de política e economia. Capitalismo e Comunismo são reflexos desta dicotomia, cada um enfatizando teoria ou prática, e deixando o outro ao "Deus dará".
O Comunismo marxista, foi o império da práxis, tanto que ali se implantou o chamado "socialismo real". Seu fracasso pode ser atribuído à falta de conhecimento. O Capitalismo, por sua vez, manteve-se amplamente na teoria, na medida em que os valores propagados apenas puderam benefiar uns poucos. Assim, seu fracasso também pode ser creditado à falta de prática (talvez o realismo monárquico almeje aqui um equilíbrio).
Mas tudo é relativo, e ambos apresentam os dois aspectos. Nos anos 60, a juventude se dividiu de certa forma entre os que buscaram uma vida alternativa e os que optaram pela luta armada. Estas opções denotam talvez um certo extremismo, na medida em que nenhum lado tampouco realizou, aparentemente, algo de mais profundo.
Tal coisa não acontecia no Oriente, onde abundam símbolos e mitos reunindo ambas as realidades. No Islã, por exemplo, política e religião formam uma unidade. Mas é no Oriente que a unidade da pena e a espada está institucionalizada há milênios, através de suas mitologias.
O Budismo tibetano tem uma deidade similar ao Huang Ti chinês. O bodhisatwa Manjushri ostenta nas mãos um livro e uma espada-vajra. Seu trono é um leão branco, sugerindo a função monárquica. No Tibet, o trono real é intitulado "trono do leão branco", e Manjushri é visto como o patrono dos reis. Assim, o saber e a autoridade surgem como os instrumentos básicos do monarca. A espada é também um emblema da palavra, e no México o soberano era intitulado Tlatoani, "Aquele que fala".
Na Índia, um deus de nome assemelhado, Manu, mestre da civilização, é visto como fonte das instituições do Brahmanismo, que é a cultura hindú clássica. O Manu é o avatar ou a manifestação de Brahma, o deus criador. Dele emanam as castas, não como forças hereditárias, mas como natureza especifica de setores da sociedade, reunidas na unidade divina e dela emanada. Esta função emanativa expressa, na verdade, uma atividade central, solar ou irradiatória, posto que todo o verdadeiro rei está acima das classes e as comporta, na medida em que é perfeitamente capaz de atender os interesses comuns, sem prejuízo de nada, para a harmonia da sociedade no seu conjunto.
As castas emanam da boca (sacerdotes), mãos (guerreiros), ventre (comerciantes) e pés (servidores) do Manu. Podemos dizer que o livro e a espada representam aqui as classes dos sacerdotes e dos guerreiros –as únicas que os hindus reconhecem como credenciadas para o poder– porém, não estariam capacitadas à consciência universal: a figura do Manu, isto sim, significa a existência a uma força-de-unidade acima das divisões, e esta Entidade se manifestava regularmente como guardiã da ordem geral, até na forma dos reis iluminados segundo os mitos antigos, legitimando a existência das castas enquanto especificações da atividade divina. Assim, o Manu era não apenas um deus-civilizador, que encarnava no mundo como protótipo racial no início das eras, mas também, numa outra escala, os divinos regentes, presentes regularmente no seio das sociedades eleitas, não obstante através de um "Governo Paralelo" de divinos conselheiros.
O próprio Manu é um todo e, antes de tudo, se trata da Mente universal. Em sânscrito, mente é manas. O Manu é o Mentor portanto (e também Guia), e não somente o "Pensador" como costuma ser traduzido. Na trindade Espírito-Alma-Mente, o Manu corresponde, pois, mais especificamente à última.
Porém, a mente é dual, e por isto Manjushri é o Deus do conhecimento em sua dupla natureza: concreto (ciência) e abstrato (ocultismo) –outra visão da dualidade pena-espada. Como a idéia de manifestação traz consigo a da evolução, e esta a de ciclos, Manjushri está especificamente vinculado à doutrinas como a Astrologia e a Alquimia, que no Budismo do Norte fundamentam os sistemas Kalachakra. No Bramanismo, também existem determinações de ordem política, social e conjugal fundadas sobre tais ciências.
Mas a espada representa ainda a justiça ativa, a força equilibrante que restaura a harmonia a todo custo, ou aquilo que no Oriente se costuma chamar de carma. Trata-se do caminho da atividade física e da experiência.

* Da obra "Sociologia Universalista", Luís A. W. Salvi, Ed. Agartha, 2008, AP.


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